Qualquer guerra é um espetáculo sangrento e abominável. Mas até para matar há limites: as armas não devem causar ferimentos supérfluos, cruéis, desumanos ou degradantes. Isso em teoria. Pois o homem inventa, produz, armazena e está pronto para usar um arsenal tão perverso que até a tênue ética da mortandade fica manchada. São as armas químicas, chamadas “bomba atômica dos pobres”, pois podem ser preparadas em qualquer país que disponha de uma indústria de fertilizantes químicos ou pesticidas medianamente desenvolvida. Meses atrás, por exemplo, descobriu-se na Líbia uma fábrica de armas químicas disfarçada de indústria farmacêutica. E uma mostra real desse pesadelo ficou registrada em março do ano passado no ataque iraquiano com gás mostarda à aldeia de Halabja, um lugarejo em seu território que havia sido invadido pelo Irã, habitado pelos curdos. Cinco mil civis foram mortos. Sete mil ficaram feridos. As imagens das vítimas paralisadas em agonia horrorizaram o mundo. Por sua vez, a União Soviética foi acusada de usar gases incapacitantes contra os rebeldes no Afeganistão. A ideia de aniquilar o inimigo por envenenamento é bem antiga. Já na Índia de 2000 a.C. era comum empregar nas guerras cortinas de fumaça, dispositivos incendiários e vapores tóxicos. O historiador grego Tucídides conta que na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) os espartanos colocavam madeira impregnada com enxofre e piche ao redor dos muros das cidades inimigas, criando vapores sufocantes. No fim do século XIX, na Guerra dos Bôeres, na África do Sul, as tropas inglesas inventaram um artifício para lançar ácido pícrico, um explosivo. O engenho não funcionou, mas começaram aí as tentativas de ganhar combates com armas tóxicas. No entanto, com o desenvolvimento da ciência, começou também a fabricação de substâncias poderosamente venenosas para fins militares. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) marcou a entrada da química nos campos de batalha. Em 1915, o cientista alemão Fritz Haber teve uma ideia para obrigar as tropas inimigas a sair da proteção das trincheiras e aceitar o combate a céu aberto: espalhou gás cloro num front perto da cidade belga de Ypres. Foi uma devastação – 5 mil desprevenidos soldados franceses foram mortos e outros 10 mil ficaram feridos. O cloro pertence ao grupo dos gases sufocantes, que irritam e ressecam as vias respiratórias. Para aliviar a irritação, o organismo segrega líquido nos pulmões, provocando um edema. A vítima morre literalmente afogada. Como se não bastasse o cloro, a desenvolvida indústria química alemã – especialmente a tristemente famosa IG Farben – redescobriu o gás mostarda, inventado meio século antes na Inglaterra. Além de atacar o revestimento das vias respiratórias provocando feridas e inchaço, esse gás com cheiro de mostarda (daí o nome) provoca bolhas e queimaduras na pele e cegueira temporária. Inalado em grande quantidade, mata. Os franceses retrucaram como cianeto de hidrogênio e o ácido prússico, chamados gases do sangue. Quando inaladas, as moléculas desses gases se unem à hemoglobina do sangue, impedindo-a de se combinar com o oxigênio para transportá-lo às células do corpo, causando a morte. Ao todo, as mortes provocadas por gases venenosos na Primeira Guerra Mundial somaram perto de 100 mil; os feridos, em torno de 1,3 milhão. A fama de vilão porém recaiu exclusivamente sobre Fritz Haber, o mentor do ataque alemão a Ypres. Pouco lhe valeu ser contemplado com o Prêmio Nobel de Química em 1918 – sob protesto dos cientistas – por ter conseguido a síntese da amônia, inventando assim os fertilizantes químicos. Quando Hitler chegou ao poder na Alemanha em 1933, Haber, por ser judeu, emigrou para a Inglaterra. Ao encontrá-lo em Londres, logo em seguida, o físico inglês Ernest Rutherford , também Prêmio Nobel, recusou-se a apertar-lhe a mão. O criador da guerra química morreu no ano seguinte, de ataque cardíaco. Em 1925, a Liga das Nações, precursora da ONU, havia proibido no Protocolo de Genebra o uso militar de gases asfixiantes, tóxicos e outros, assim como o de agentes bacteriológicos. A Liga omitiu-se, porém, quanto a fabricação e estocagem desses venenos. Mal tinha secado a tinta do protocolo, a Espanha reprimiu a gás mostarda uma revolta em Marrocos, então sua possessão. E em 1931 o Japão usou fartamente armas químicas na invasão da Manchúria, onde também realizaria horrendas experiências de guerra bacteriológica. Em 1936, as tropas italianas jogaram gás mostarda na Etiópia, matando homens, animais e envenenando rios. Naquele mesmo ano, na IG Farben alemã, um químico chamado Gerhard Schrader estava incumbido da pacífica tarefa de desenvolver inseticidas. Trabalhando com organofosforados – compostos de carbono, hidrogênio e oxigênio misturados ao fósforo -, Schrader sintetizou um produto tão mortífero que era impossível usá-lo como inseticida. Estava criado o tabun, o primeiro dos gases neurotóxicos (que agem sobre os nervos), até hoje a mais terrível espécie de arma química já inventada. Dois anos mais tarde, Schrader inventou o sarin; e já nos estertores da Segunda Guerra Mundial, em 1944, criou o soman, oito vezes mais letal que o primeiro e duas vezes mais que o segundo. Os gases dos nervos matam em minutos. Atuam inibindo uma enzima chamada acetilcolinesterase, necessária ao controle dos movimentos musculares. Essa enzima bloqueia os impulsos nervosos que ativam os músculos. Quando o gás neurotóxico é absorvido, por inalação e contato com a pele, a produção da enzima cessa imediatamente. Todos os músculos então se contraem sem parar e acabam estrangulando os pulmões e o coração. É mais ou menos assim, por asfixia, que morrem os insetos atacados com inseticidas. Os gases mortíferos dos nazistas não chegaram aos campos de batalha, mas foram empregados em larga escala no assassínio de populações inteiras: a IG Farben desenvolveu o zyklon-B, o gás usado pelos nazistas para matar milhões de judeus nas câmaras dos campos de extermínio. Terminada a guerra, os aliados se apoderaram das técnicas e dos estoques da IG Farben. Em pouco tempo, carregamentos secretos de gases dos nervos chegaram aos Estados Unidos e à União Soviética. Ainda havia o que aperfeiçoar nessa área. No começo da década de 50, a empresa química inglesa ICI criou a chamada família V, com os gases VE e VX, muitas vezes mais tóxicos que os dos alemães se é que é possível imaginar isso. A praga continuou a cruzar novas fronteiras. Durante os sete anos da Guerra Civil no Iêmen do Norte, de 1962 a 1969, as tropas egípcias que participavam do conflito usaram armas químicas vindas da União Soviética. O maior escândalo, porém, aconteceu do lado americano. Na Guerra do Vietnã, os Estados Unidos jogaram, além do conhecido incendiário napalm, toneladas de gás lacrimogêneo, que irrita os olhos e as vias respiratórias, deixando as vítimas fora de combate por algum tempo. O gás lacrimogêneo é usado em muitos países para dispersar manifestações de rua. Pior que isso foi o emprego dos desfolhantes, conhecidos como agentes laranja, azul e branco. Os desfolhantes haviam sido inventados no fim da Segunda Guerra, no principal laboratório de pesquisa do Exército dos Estados Unidos, em Fort Detrick. Tais herbicidas servem para destruir ervas daninhas nas plantações. O agente laranja, o mais usado no Vietnã, mistura de dois herbicidas, tinha o objetivo de destruir plantações e florestas, principalmente matas fechadas à beira dos rios, de onde os guerrilheiros vietcongues fustigavam tropas americanas. Dessa vez, porém, os cientistas honraram a ética da profissão e pressionaram o Congresso americano a proibir a fabricação de armas químicas. De fato, a produção dessas armas chegou a ser suspensa em 1969. A população despertou para o problema um ano antes, quando durante testes com gases neurotóxicos na base militar de Dugway, no Utah, um vazamento do produto matou 6 mil carneiros das redondezas. O perigo de viver perto dos armazéns de veneno já não podia ser subestimado. A notícia do acidente só chegou ao conhecimento da opinião pública por causa da morte dos carneiros, que não pôde ser ocultada. Mas é virtualmente impossível, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, identificar os cientistas a serviço do mal. Em nome da segurança nacional, eles permanecem sempre anônimos, da mesma forma que os laboratórios envolvidos nas experiências. Mas, como os gases, informações vazam. Na Universidade da Pensilvânia, em 1965, a desconfiança de um estudante levou à descoberta de dois contratos secretos com o Pentágono para pesquisa em guerra química e biológica. Empresas como a Dow Chemical e a Monsanto foram acusadas de fabricar desfolhantes. Na Alemanha, pelo menos treze empresas fornecem pesticidas aparentemente inocentes a países do Terceiro Mundo. A rigor, raras armas químicas conhecidas foram criadas em laboratórios exclusivamente militares – cientistas acadêmicos ou empregados em indústrias sempre estiveram por trás dessas pesquisas. Não é preciso construir instalações especiais para fabricar armas químicas. Para a vida ou para a morte, a indústria química funciona do mesmo modo, com dois processos: conversões químicas e operações unitárias. Conversões são reações entre produtos químicos nos reatores, recipientes de aço inoxidável revestidos às vezes de materiais cerâmicos ou plásticos. Operações unitárias são as conversões físicas, como destilação, evaporação ou filtração. A grande diferença entre uma indústria química qualquer e uma produtora de gases venenosos está no cuidado de quem lida com o material. Naturalmente, quanto mais tóxicos os produtos, maior a necessidade de segurança. Já lançar armas químicas é uma operação semelhante a um ataque normal de artilharia – com a diferença de que as bombas não carregam apenas explosivos, mas também gases. Como os venenos químicos são perigosos também para quem os joga, os atacantes devem estar protegidos contra eles. Pensando nisso, os americanos desenvolveram as chamadas armas binárias. Estas têm dois compartimentos, cada um com uma substância por si só pouco tóxica. A mistura ocorre na hora da explosão, formando gás mortal. Mesmo que os combatentes estejam protegidos com máscaras e roupas emborrachadas, a luta prolongada no front envenenado pode ser cruel. As roupas, extremamente desconfortáveis, tendem a provocar desidratação. Estudos soviéticos mostraram que, depois de usar a roupa protetora por dezoito horas seguidas, um soldado fica totalmente fora de combate. Os soldados britânicos, de seu lado, levam presos ao uniforme pequenos papéis que mudam de cor na presença de gases tóxicos. Ao perceber que foi atacado com gás dos nervos, o soldado se aplica imediatamente uma injeção de atropina, um antídoto que traz consigo. A atropina, substância derivada de uma planta chamada beladona, faz no organismo o papel da acetilcolinesterase inibida pelo gás. Porém, se o alarme for falso, a atropina fará com que a pessoa sinta os mesmos efeitos que o gás lhe provocaria. O serviço de inteligência americano, CIA, calcula que vinte países têm armas químicas e outros dez estão na fila para começar a produzi-las. Os arsenais conhecidos estão nos Estados Unidos (30 mil toneladas), na União Soviética (400 mil toneladas), na França e no Iraque. Os países que provavelmente têm mas não confessam são Egito, Síria, Líbia, Israel, Irã, Etiópia, Birmânia, Tailândia, Coréia do Norte, Coréia do Sul, Vietnã, Formosa, China, África do Sul e Cuba. Nas mãos das superpotências nucleares, pouca diferença fazem os estoques químicos. O equilíbrio pode romper-se, porém, com a propagação de armas semelhantes pelo mundo afora – o mesmo temor, por sinal, inspirou os esforços contra a proliferação nuclear. A indignação causada pelo ataque iraquiano a Halabja serviu ao menos para disparar uma nova investida pelo desarmamento químico. No começo do ano, em Paris, representantes de 149 países condenaram o uso de armas químicas como passo inicial para futuro acordo de completo banimento. Quem viver verá. Artigo extraído e adaptado do site Super Interessante.

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